quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

A conceção de poesia e de poeta

ARTE POÉTICA 
A poesia do abstracto...
Talvez.
Mas um pouco de calor,
A exaltação de cada momento,
É melhor.
Quando sopra o vento
Há um corpo na lufada;
Quando o fogo alteou
A primeira fogueira,
Apagando-se fica alguma coisa queimada;
É melhor...
Uma ideia,
Só como sangue de problema;
No mais, não,
Não me interessa.
Uma ideia
Vale como promessa,
E prometer é arquear
A grande flecha.

O flanco das coisas só sangrando me comove,
E uma pergunta é dolorida
Quando abre brecha.
Abstracto!
O abstracto é sempre redução,
Secura.
Perde;
E diante de mim o mar que se levanta é verde:
Molha e amplia.
Por isso, não:
Nem o abstracto nem o concreto
São propriamente poesia.
Poesia é outra coisa.
Poesia e abstracto, não.
Vitorino Nemésio, O Bicho Harmonioso (1938)

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