Lisboa, a segunda capital mais antiga da Europa, ganhou uma plataforma
digital que pretende contar os seus pequenos e grandes segredos.
Chamado “+ Lisboa”, é um projeto muito recente que foi buscar os
trabalhos feitos por professores e investigadores da Faculdade de
Ciências Sociais e Humanas (FCSH) da Universidade Nova, resumiu-os de
forma a facilitar o acesso e pretende dar a conhecer todo um mundo de
curiosidades que, de outra forma, continuariam fechadas entre as paredes
da Academia.
Pesquisámos algumas das mais de 200 entradas já
disponíveis e escolhemos dez, para aguçar o interesse do leitor. Para
aceder ao portal, basta digitar http://maislisboa.fcsh.unl.pt,
depois pode navegar escolhendo um local ou uma categoria (temas,
tempos, território) ou recorrendo ao tradicional menu. As escolhas darão
sempre acesso aos trabalhos originais, através de links. Para já, as
nossas escolhas são:
1.
Azulejos com música?
Sim, em Lisboa, no antigo Colégio dos Meninos Órfãos, situado na Rua da
Mouraria, nas traseiras do centro comercial, há um conjunto de painéis
escondidos com azulejos do século XVIII, recheados de motivos musicais.
“São, no total, quarenta painéis com temas bíblicos: trinta representam
temas do Antigo Testamento e dez são dedicados ao Novo Testamento”,
explica o portal. A autora do trabalho foi Luzia Rocha, do Centro de
Estudos de Sociologia e Estética Musical da FCSH/NOVA, que, neste
artigo, faz o primeiro enquadramento musicológico dos três painéis que
contêm referências musicais.
No primeiro – “Jacob rouba a bênção
de Esaú” – dois caçadores tocam trompas de caça, um dos instrumentos
musicais mais representados na azulejaria portuguesa da primeira metade
século XVIII. No segundo, “David, personificação da música sacra, acalma
Saúl e protege-o dos espíritos malignos tocando harpa e a música assume
um poder curativo, quase medicinal”, ensina o “+Lisboa”. No último
painel, intitulado “Triunfo de David”, as mulheres de todas as cidades
de Israel cantam e dançam ao som de um pandeiro, depois de David ter
morto Golias.
2.
O Chiado é uma zona de Lisboa ou uma
personagem literária? Num exame, a resposta certa era a que concordasse
com as duas opções. O portal da FCSH explica que, em 1848, o Chiado
tornou-se a primeira zona da capital iluminada a gás e que,
constituindo-se num lugar de vivência burguesa, foi descrito por Camilo
Castelo Branco em “A Queda de um Anjo” e por Eça de Queirós em “A
Capital” e, sobretudo, em “Os Maias”.
Surge também como local de
cultura, onde escritores e seus leitores se passeiam pela Bertrand, como
descreve Eça de Queirós em “Alves & Cª” (1925), associado à
frequência de cafés e pastelarias. Na segunda metade do século XIX, o
café Marrare do Polimento (Rua Garrett, 58-60), hoje lugar de acesso a
uma garagem e lojas, foi imortalizado em “Os Maias” (1888), de Eça, e em
“Coisas Espantosas” (1862), de Camilo Castelo Branco.
No Largo
das Duas Igrejas situam-se o que o portal considera serem “outras
pérolas da literatura”: a Brasileira e a Havaneza. E explica que “foi aí
que Paulo de Figueiroa, personagem de 'A Queda dum Anjo' (1866), de
Camilo Castelo Branco, recém-chegado a Lisboa, assistiu com espanto aos
espetáculos de rua”. O trabalho é de Daniel Alves e Ana Isabel Queiroz e
a fotografia é do Arquivo Fotográfico de Lisboa.
3.
Sabia
que à mesa do rei no século XVI havia carne, muita carne de vaca e
quase nenhuns legumes e frutas? A comida na corte era sinónimo de luxo e
hierarquia e Ana Isabel Buescu, do departamento de História, conta o
que era servido à mesa de D. João III (1502-1557). Na ucharia régia
(despensa do rei) entrava vaca, carneiro, galinha e perdiz. Mas havia
também tomate, ananás e chocolate.
“Vinho e pão faziam parte do
quotidiano da corte real e da população em geral, simbolizando a mesa
eucarística”, explica o artigo, que ensina ainda que “o vinho tinha
lugar destacado em festas e celebrações públicas, como na solene entrada
régia em Lisboa de D. Manuel com D. Leonor de Áustria, em 1521”, como
descreve a investigadora do Centro de História D’ Aquém e D’ Além Mar
(CHAM), da FCSH/NOVA.
4.
Lisboa
também foi atriz no cinema americano da II Guerra Mundial? Em
“Casablanca”, por exemplo, Lisboa é muitas vezes mencionada mas nunca
visionada. A cidade foi ponto de passagem dos refugiados que queriam
alcançar os Estados Unidos e, por isso, a capital portuguesa aparece em
vários filmes, desde as curta metragens “Forbidden Passage”, de 1941, ou
“Macaco Peludo” e “Um Grito na Tormenta”, ambos de 1944. Mas também é
refletida como um centro de espionagem, como explica Rui Lopes, autor do
trabalho citado no “+ Lisboa”, em “Uma Noite em Lisboa” e “Uma Mulher
Internacional”, os dois de 1941.
E “se é verdade que nestas
produções a capital portuguesa estava relativamente pouco tempo em cena,
outras houve que utilizaram Lisboa e arredores como principal cenário
da narrativa. Foi o caso de 'The Lady Has Plans' (1942), uma comédia
sobre espiões, ou 'Tempestade em Lisboa' (1944), um thriller passado
sobretudo no ambiente cosmopolita do Estoril, mas com uma dramática
troca de tiros filmada no aeroporto marítimo de Cabo Ruivo”, explica o
autor. Que sublinha, ainda, que o caso de maior sucesso foi “Os
Conspiradores” (1944), “uma história de intriga e resistência semelhante
a 'Casablanca'”.
5.
Mas
nem sempre os artigos do portal são com curiosidades positivas. Como
quando conta que “a estética do melodrama encontrou palco num prédio das
Avenidas Novas”? Foi manchete do “Diário de Notícias” quando uma
criança foi abandonada nas escadarias de um edifício da Avenida
Defensores de Chaves, acabando por merecer “uma cobertura
sensacionalista do então circunspecto jornal”.
No âmbito de um
trabalho de Cristina Ponte sobre o acompanhamento noticioso da infância
percebe-se o drama da altura: “A criança fora encontrada pela porteira
do prédio, que telefonara para ‘o seu jornal’ antes de chamar as
autoridades (não é de hoje…). A redação viu ali um exclusivo, havia que
lhe dar visibilidade. Era necessário enviar um jornalista aos locais,
ouvir a porteira, a enfermeira na Misericórdia que acolhera a criança, o
polícia de serviço na esquadra do Matadouro. O fotógrafo captaria umas
imagens da criança chorosa, num contraste entre aquele menino abandonado
com os 'milhares de crianças, felizes, [que] passeavam pela estrada
marginal, no convívio dos pais', como se lê na abertura da sentimental
peça escrita sobre este caso. O remate: 'Um drama na cidade imensa. Um
drama que não devia ser possível no domingo pacato, tranquilo,
ensolarado'.”
E, no dia seguinte, o desfecho: “Foi um ato
desesperado. Abandonou o filho pensando assim assegurar melhor o futuro
do seu menino. Escolheu um prédio de ‘gente rica’ mas, depois, horas
passadas, arrependeu-se. A mãe vencera a mulher em dificuldades,
abandonada, esquecida por alguém que lhe prometera amor e felicidade…”.
6.
Outra
história escondida é a da desobriga pascal — confissão obrigatória da
população por altura da Páscoa —, que permitiu fazer em 1801 a primeira
contagem populacional próxima do conceito atual de recenseamento. Daniel
Alves, do departamento de História, foi buscar a contagem dos ausentes e
dos confessados de Lisboa e percebeu que dos 7.964 faltosos, 71 por
cento eram homens. Explica ainda que a ausência da freguesia, motivo
comum a homens e mulheres para a falta à desobriga pascal, é também um
indicador dos movimentos migratórios que se faziam, no geral, de Norte
para a capital e Alentejo. Dados que permitem hoje conhecer a
demografia, a religiosidade e a mobilidade da população no princípio do
século XIX.
7.
Houve
um tempo em Lisboa em que ir ao cinema era muito mais do que ver um
filme. Era um verdadeiro acontecimento. As pessoas vestiam-se à maneira e
as salas recebiam-nas com fasto e imponência. O tempo das grandes
salas, verdadeiras catedrais do cinema, em que a colocação de
gigantescas faixas publicitárias na fachada do Éden causou polémica
entre os lisboetas e que a primeira escada rolante do país foi
inaugurada na sala do Cine-teatro Capitólio. Detalhes que deram origem a
um percurso dos cinemas grandiosos da cidade no “+ Lisboa”.
O
percurso começa na Rua António Maria Cardoso, no Teatro São Luiz,
projetado pelo arquiteto francês Louis Reynaud, que lhe conferiu o
caráter cosmopolita. Passou a sala de cinema – São Luiz Cine – a 7 de
abril de 1928, depois de algumas sessões esporádicas. “Metropolis”, de
Fritz Lang, foi o primeiro filme projetado neste novo cinema, que
rapidamente se adaptou às exigências do sonoro. Hoje, acolhe a Companhia
de Teatro São Luiz.
8.
Na
primeira metade do século XX, os menores vadios eram chamados
“chagados”, “mazelentos” ou “ranhosos”? Num período marcado pelo
progresso e pela consolidação do conceito de família, a imprensa
colocava de parte as franjas populacionais mais desprotegidas.
O
trabalho da investigadora Maria de Fátima Pinto mostra uma face mais
sombria de uma época de Lisboa. Conta, por exemplo, que “as mulheres
exibiam rostos magros, pálidos e macilentos; os homens tinham grandes
barbas, sujas e desmazeladas. Xailes de tons escuros, chapéus deformados
e vestuários com buracos e de aspeto amassado denunciavam os
indigentes, gente com 'rostos escaveirados, expressões bestializadas,
encardidas nas intempéries ocultas, sob uma camada viscosa de imundície'
('A Batalha', 25-03-1925). Lisboa expunha mazelas graves, como a
“mendicidade estropiada”, que “pulula[va], gangrenada de doença e
miséria” ('O Século', 29-04-1924).”
9.
Quantos
lisboetas sabem, por exemplo, que o Finalmente Club, inaugurado em
1976, é ainda hoje em Lisboa o único espaço com espetáculos de
transformismo 365 dias por ano? O investigador Marcos Freitas fez uma
análise etnomusicológica dos espetáculos do Finalmente e constatou “o
desejo de os transformistas voltarem a ser bem vistos pelo público e a
crítica – como atores, e não pessoas 'com problemas identitários'”.
“Podem
chamar loucura, mas achamos que o que fazemos é cultura”, afirmou
Fernando Santos (de nome artístico “Deborah Krystal”), diretor artístico
e transformista no Finalmente Club, ao autor da investigação, no âmbito
da sua tese de mestrado em Ciências Musicais (2013) da FCSH/NOVA.
Marcos Freitas analisou a performance do transformismo apresentada neste
espaço nos últimos 40 anos, numa relação entre a música, o género e a
sexualidade.
Porque, como explica o “+ Lisboa”, “no contexto do
pós-25 de abril de 1974, o transformismo deixou de estar confinado ao
Carnaval, ao teatro e às festas privadas, institucionalizando-se
enquanto espetáculo público”. Conta também que o Scarllaty Club, na Rua
de São Marçal, foi a primeira casa de transformismo a abrir portas, em
1975. Seguiu-se, entre outros, o Finalmente Club, em 1976. “No entanto,
nos anos de 1980, os transformistas, até então bem vistos, começaram a
ser recriminados e equiparados aos 'travestis de rua', fruto de estigmas
relacionados com o VIH e a homossexualidade”, explica o autor da
investigação. “Perdeu-se o espetáculo, prevaleceu a sexualidade”, resume
Marcos Freitas.
10.
E
quantos lisboetas sabem que uma horta no Campo Pequeno foi cenário de
arte experimental? Entre a estação ferroviária de Entrecampos e atrás da
Praça de Touros, no centro da capital, há uma horta, a horta do Baldio,
que, além de legumes, cultiva arte. Cláudia Madeira, do Departamento de
Ciências da Comunicação, assume-se como “uma das participantes e
guardiãs da Horta do Baldio”. Problematiza o papel da arte e da cultura
no desenvolvimento sustentável de uma cidade, tendo como referência este
projeto e, além da investigação, Cláudia Madeira partiu para a ação.
Com a colaboração de alunos de Programação Cultural, do curso de
Ciências da Comunicação da Faculdade, promoveu na Horta do Baldio o
dispositivo experimental e de participação coletiva “Estendal”. Na
inauguração, em junho de 2016, desenvolveu-se uma performance-exposição
em lençóis onde se iniciou a divulgação de processos artísticos e de
investigação sobre a ecologia das cidades.
Se o Kings College pode, porque não nós?
Se
Londres e o Kings College podem, porque Lisboa e a Faculdade de
Ciências Sociais e Humanas (FCSH) da Universidade de Lisboa não
poderiam? Quando em maio deste ano Cristina Ponte, docente do
departamento de Ciências Comunicação da FCSH viu uma apresentação da
instituição britânica na conferência “Universidade, Cultura e Cidade”
sobre a comemoração dos 500 anos da “Utopia”, de Thomas More, nas ruas
londrinas quis mostrar que os lisboetas, e a faculdade, também tinham
muito a mostrar.
Cinco meses mais tarde, o projeto está pronto.
Foi lançado há uma semana, chama-se “+ Lisboa, Conhecer e Contar a
Cidade” e agrega a produção científica dos académicos da casa, traduzida
para linguagem jornalística e com os conteúdos georeferenciados e
localizado num mapa interativo da cidade.
Todas as áreas da
faculdade foram convocadas a participar e mais de 500 trabalhos estão
identificados, dos quais 200 já foram introduzidos no portal. Afinal,
são 38 anos de uma faculdade com áreas tão variadas como História da
Arte, Música, Estudos Medievais, História Contemporânea, Linguística,
Sociologia ou Antropologia.
A coordenadora editorial do projeto é
Dora Santos Silva, doutorada em Jornalismo Cultural, e foi a ela que
coube procurar as ferramentas digitais que concretizassem a ideia. “Este
é um projeto low cost, todo feito dentro da casa, sem recurso a
programadores externos, e que mostra como é possível fazer coisas com
pouco dinheiro e que vão servir de exemplo a outras faculdades”, diz.
Para
Cristina Ponte, o “+ Lisboa” revelou-se um elemento agregador dos
vários departamentos da FCSH: “Espelha a nossa capacidade de
investigação e faz com que nos conheçamos melhor. Descobrimos coisas de
que nem fazíamos ideia.” E, diz, sobretudo, “esta é uma forma de mostrar
a importância das Ciências Sociais e Humanas na criação de laços com o
território”.
O projeto já foi apresentado em Varsóvia numa rede
europeia de universidades e está a ser discutida a celebração de um
protocolo com a Câmara Municipal de Lisboa. O desejo da faculdade é que
os conteúdos sejam traduzidos para inglês e espanhol e que seja criado
um núcleo redatorial mais sólido e que não seja baseado apenas no
voluntariado.
Fonte:Expresso
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